quarta-feira, 7 de março de 2007

TEIA DE ETERNIDADE

Depois do vento de hoje já não sei mais quais fios são meus e quais os teus, já não é preciso rupturas, separações, silêncios ou outras coisas que nos calam, coisas que nos traem, hoje somos um fio de certezas e eu nem sei se esta palavra existe ainda, tão certa que estou de tudo, das linhas nas quais nos enredamos sempre, sempre que dá vontade de se enrolar nesse tecer de júbilo que faz o favor de apagar todo o resquício de medo,dor, cansaço ou nostalgia, não fica nada, e assim costurada a nossa história não há quem ouse desmanchar, ela se torna (ainda que muitos pensem que isso nem é possível) indesfiável, indecifrável, incomunicável, ela jamais se desfia, há algo maior que a conserva intacta, mas não imóvel, ela vai tomando a nossa forma, a forma de cada dia, e vai ficando assim do jeito do nosso corpo e com o cheiro, o calor, o frio da nossa alma, sem que a gente saiba direito onde vai romper esta rede, seguimos na lua das nossas noites, no sol das nossas praias, sempre querendo mais, embebidos, costurados, mergulhados desde o pé até o último fio de cabelo nesta lama boa, (textura de nuvem mais molhada um pouco ,mais espessa um pouco) nesta areia desnuda que cai no olho e, pasmem, não deixa a gente cego, só de olhar meio anuviado, enxerga-se o necessário para permanecer assim, mole, incrustada na pele a teia da eternidade.

sábado, 3 de março de 2007

COMO DE COSTUME

Levantei-me no mesmo vagar dos dias em que acordo sozinha, quando já foste trabalhar, mas para meu espanto estavas na sala, parecendo fitar-me. Eis que tu passas por mim, entras no banheiro, escovas os dentes, olhas cada um para ver se estão mais brancos, pois é preciso impressionar o chefe e os clientes. Tento lembrar se estamos brigados ou não, o que é extremamente difícil a esta hora da manhã. Nada me vem à memória. Em vão balbucio algumas palavras para confirmar se tu me ouves. Nada. Se tivemos brigas deve ter sido algo sério, penso comigo. Arrumas tua bolsa como de costume, bufando, e eu me perguntando por que não me lembro, começo a irritar-me, também como de costume. De nada adiantou bradar e quando bateste a porta dizendo como estavas atrasado – como de costume- um gesto ficou faltando, e voltaste sem pudor à beira da nossa cama para me dar o beijo de antes de ir para o trabalho, mas, pasmem, eu não estava lá, quer dizer, eu estava, sendo que tu não conseguias me ver, então, sem ar, saíste novamente, porta afora. À soleira, esperei teu gesto como de costume, mas de novo passaste por mim como se não me enxergasse. Busquei os chinelos para ir ao teu encontro, calçando-os num automatismo louco, sem olhar sequer para o chão, abrindo a porta. Não te vi, vi apenas o vizinho vindo em minha direção com um risinho safado que me cobriu de rubor interno e externo. Não pude olhar para o meu próprio corpo mas ao apalpá-lo pude constatar o temível: estava completamente nua. Voltei correndo de marcha a ré e tranquei a porta, o homem porém a esmurrava sem dó, rindo de um jeito que é melhor que nem seja descrito. Bufando e resmungando – como de costume- subiste as escadas em velocidade. Soltei um suspiro de alívio, o vizinho afastara-se encabulado dizendo que errara de porta. Fizeste cara de quem não entendeu e passaste a chave na fechadura, vi tudo pelo olho mágico, abriste a porta tão abruptamente que despenquei no chão. Tonta, mal pude ver o que pegaste em cima da mesa, saíste tão rápido quanto entraste. Só mais uma briga, pensei, deve ter sido grave, ele deve estar chateado, só gostaria de saber o porquê de eu não conseguir me lembrar. Resolvi continuar a vida, isto deve passar, vou tomar um banho, antes lavar os olhos, colocar a lente...mas o espelho, que costuma refletir imagens, que devia refletir imagens, não refletiu a minha.

TORRE DE BABEL (OU ESCRAVA DA PALAVRA N° 2)

Nas fotos estamos sempre em risos duros, permanentes. No entanto, já se mostra difícil mantê-los assim, rígidos em meio ao meu sentimento único de não pertencer. Estrangeira de mim mesma, tento delinear outras formas para este rosto -o meu, que vos fita neste milésimo de segundo que já não é, agora foi – pois sobre minha voz, meu punho, meu sangue, já não gozo de nenhum poder. O que antes era motivo de orgulho – razão pela qual era até compreensível que fosse doído – hoje é meu cárcere. Mas não se atreva a me libertar pois serei como canário em gaiola, de nada adiantará fazer-me falar tua língua, sofro de impossibilidade letal quando se trata do aprendizado de outros idiomas. Rejeitadas instantaneamente pela minha já apodrecida massa cinzenta, as novas palavras, impedidas de atingir seu destino- meu preconceituoso léxico- vão formando uma imensa e fétida bile que meu corpo não hesita em regurgitar.

ESTRANGEIRA DE MIM

Ah, esta sensação louca e ao mesmo tempo branda de não pertencer, este estrangeirismo duro que persegue meu corpo como quem gruda e não é bom, como quem ama e não chega perto, como quem fala e não diz palavra. E palavras me sobram como me faltam as coisas que ocupam as outras almas deste mundo e as de outro – quem sabe? Eu que sempre vivi neste exato mundo -que hoje habitas comigo- e em outro ao mesmo tempo, querendo sempre ter os pés no chão, querendo ter as glórias mundanas não permitidas aos portadores da eterna epifania, incessante epifania, enquanto tantos imploravam ao Pai por um só momentinho que fosse, voando. Mal sabem eles o quão dolorido é não ter onde pisar, o quanto falta este odor impregnado da terra, o quanto custa cada segundo deste planar. Palavras não me faltam, eu sei, elas desabrotam como quem cospe fogo, como se não houvesse outro destino possível. E não há. Entre as muitas tentativas de calar, as vozes esbarram na sua sina embora não confirmada , mas presente. Pouco há o que fazer. Elas dançam doidas como o vento pobre do ventilador nas persianas da casa, artificiais ao mesmo tempo que espontâneas, só. Há pouco o que fazer. Os dedos correm o teclado, a tinta mancha o caderno, o lápis roça o guardanapo. E só.

PARA CANTAR A MULHER DA MINHA VIDA

Há que usar muitas palavras para cantar a mulher da minha vida. Palavras das mais castas, santas, brancas, calmas e leves, e até das vis, pois trata-se de pessoa humana.
Há que segui-las de adjetivos para que caminhem corretamente adornadas, do contrário seria pouco para falar daquela que me marcou como quem marca gado: a ferro e fogo. De início dói,mas agora permanece - sabor de eternidade - feito tatuagem que enfeita e veste, e dá o tom de quem a gente é. Palavras são poucas.
Há que usar das mais belas e quentes e frias e tácitas metáforas, assim como é próprio dos poetas que cantam suas amadas. Há que usar rimas, das pobres, das ricas e das medianas, sem discriminação de classe. Afinal, para cantar uma mulher faz-se preciso tanto as flores quanto os diamantes. Palavras, há que casá-las muito bem a fim de construir imagens, ofício da (boa) poesia. Que ao ler a mulher amada tenha um filme à sua frente, claro e sutil,
telas de grandes artistas animando-se a cada linha. Mas por mais que as palavras se façam solenes neste momento, há que tocar àquela que me emprestou seu seio e me entregou seu corpo. Tem de haver um beijo, um enlace.
E, por fim, há que dizer: “ainda que o tempo passe, ainda que sua pele perca o viço, ainda que o seus corpo feneça, ainda assim te amarei, cada vez mais”. Há que reproduzir o momento em que ela me viu pela primeira vez e, desamparado, ela me aninhou em seu colo e deixou rolar a primogênita das muitas lágrimas que ainda estavam por vir.

CARA-METADE?

Muito tem se falado a respeito da cara-metade, muitos livros foram escritos, muitas músicas foram compostas, discussões em programas de TV, artigos de revistas, jornais, todos se ocupam de ensinar como se identifica, como se conquista a tal cara-metade, ou alma gêmea, ou par perfeito, como diriam alguns. Não concordo, para se ter uma alma gêmea, supõe- se duas pessoas iguais em, pelo menos, cinqüenta por cento, o que deve ser muito chato, não há quem goste de ser gêmeo, nada pior para se manter alguma individualidade, o casamento de duas almas iguais só pode ser, no mínimo, um saco. Já o par perfeito supera o limite da paciência.Todos nós sabemos que não existe ninguém perfeito, então, necessariamente, quando você procura seu par perfeito, você está procurando nada mais nada menos do que... um alguém que não existe, ou então você é um ser humano que extrapola os limites da pretensão e quer casar-se com Deus sem tornar-se padre. Impossível. No entanto, nada melhor na vida do que encontrar sua cara-metade. Não é a parte que te cabe, é a parte que te falta, que te completa, a calma que dilui a raiva dos agressivos, a delicadeza que freia a velocidade dos impulsivos, a letra que traduz a música das imagens, a massa que dá forma a uma idéia... E não há ninguém, pelo menos neste planeta, que não tenha seu pedaço vazio, onde não falta ao menos alguma coisa, mas várias delas, todas esperando para encontrar sua peça de encaixe, luva pra sua mão, língua pra sua boca, pálpebra pro seu olhar, bico pro seu seio, lápis pra sua folha em branco que, sedenta de intensa procura, encontra tempo, espaço e forma para ser preenchida. E em meio a tantos espaços em branco, há quem pense que a cara-metade, coitada, tem obrigação da eterna completude. Ledo engano. Se já é metade, nasceu metade, para sempre metade, morrerá metade. Serve apenas para limpar o pus das brumas renascentes, nossa sina.Não há nada melhor do que pairar a aura da perfeição no pobre perfurado donde sangra a falta.