domingo, 18 de maio de 2008

Nascerá em setembro

Desde o momento em que você me toque, não sei o que nascerá. Se místicos silêncios, míticas criaturas, mínimos convites à ventura tortura-nte de dividir-se ou multiplicar-se, ou este silêncio nada insepulto que me veste ao revés como de um jeito fúnebre que não combina-nada com esta idéia de nascer e muito menos de nascer em setembro, em plena veste primaveril, ou de ver em ver-sículos in-visivel--mente escritos. Não chora. Ainda que se bata em suas nádegas não chora. Fala com as mãos que manipulam o olhar estático dos meus sons. Eu que não vi, olhei envis-tesado com o meu olho esquerdo, mas falta a lente de contato. Os dedos doem, me custa falar com as mãos o que o ouvido não dá conta de ver e o olho direito, repleto das degenerações reticulares ou maculares – me parece melhor – como disse a médica que examinou-me a fundo a janela direita, dá forma a tudo o que vai lá, mas perde o que vem. Deste modo quem pode amar assim? O que nascerá desta febre que dá e passa em setembro se nada se deixa ver de perto do lado direito? Passarei espaçosa ao longe do meu lado emocional que dói todo – o direito que nada tem de direito – de tão usado e desgastacionado pelos movimentos que danam a repetivividade. Deitarei espessa no fato de que precisarei de lentes para ver de perto, mas quem me garante a vera-cidade do que me vem achegar-se? Leia para mim! Leia para mim as pálpebras do meu amado, ou os pêlos mais finos do seu peito para que em mim derramado, eu possa vê-lo sem recurso, a alma e a cútis, numa plenitude que só no escuro se possa enxergar. Assim nascerá, em setembro ou em qualquer mês janeleiro. E derradeiro em mim, ganhará mundo.

25 de agosto de 2007, depois de assistir ao documentário “Janela da alma”

O sol brilha lá fora mas eu acordei pra dentro. (para Daniela Pesset)

O sol brilha lá fora mas eu acordei pra dentro. Os pais brincam com seus filhos nos parques e condomínios, jogam bola, mas o que era pequeno ficou grande. Tomei um gole d’água que ganhou ares de tempestade. Hoje tudo é grande em mim: as mortes sucessivas, seguidas todas sempre de suas respectivas ausências, os vazios tão cheios de pecados que o corpo de Cristo que recebi esta manhã já me transbordou. Já não me cabe, não mereço, não sou digna. No entanto, o sol brilha. Há mães fitando seus rebentos pela primeira vez. Mas hoje em mim só cabe o olhar daquela que se despediu. Não há onde guardar canções de mar ou melodias de céu, resta o silêncio de quem já ouviu um dia e sabe muito bem o que perdeu. Mas apesar de tudo, o sol brilha. E esquentou até a fervura do meu dorso à porta do templo. Eu não cabia lá dentro, sosseguei do lado de fora, sentada no chão. Tudo imenso. Mais imenso e intenso que qualquer dor.

Rio, 6 de maio de 2007.

Foi assim que a encontrei (para Juracy Alarcón)

A casa antiga me esperava há tempos, mas faltava coragem de entrar. As pedras largas e quadradas cobriam o quintal em conjunto com a grama que há muito não via aparo. A falta de iluminação afastava mais ainda quem de fora avistasse. Quem sabia o que poderia encontrar? Só que naquela noite, eu, por mais incrível que pudesse parecer, sabia muito bem o que procurava, e, certo do que achar, enterrei o medo que me gelava os ossos. Fui em frente.
Gritinhos infantis ecoavam ao longe e meio como borboleta que escapa, pude ver o vulto de uma criança que corria. Estaria ela brincando de esconder? Vestida no seu roupão de toalha aberto, deixava à mostra o maiô estampado. Ela se movia mais rapidamente do que um inseto, e ria, ria, gritava: “Você não me pega!” Molhada, deixava as marcas dos pezinhos nas pedras. Seu rabo-de-cavalo pingava gotas que caíam como que pintando o caminho. De repente, ela desapareceu. Não ouvi nem vi mais nada. Cheguei à beira da piscina que, vazia, tinha o fundo coberto de folhas mortas. O vento frio me gelou as vestes. Nenhuma roupa, por mais quente que fosse, poderia me aquecer.
Uma janela estava acesa, lá estava marcado o nosso encontro. Eu reconheceria quando visse a luz, ela disse. Não ofuscante, não, pelo contrário, era bem fraca, penumbra de lampião que dava ao ambiente um tom sépia de foto antiga. Subi as escadas. Escorreguei os dedos pelo corrimão coberto de poeira, mas ao cair no chão o pó brilhava. Era tão fino como fuligem. Ao chegar mais perto da porta de onde brotava a luz, a promessa de calor se anunciava: um morno ar, uma aura notória de aconchego. Estaria eu já tão perto dela? Ao entrar, tive certeza: a sala era outro mundo: nem sinal de poeira, vento ou escuridão. O cômodo guardava seus móveis de aparência real, confortáveis e de contorno dourado.
Eis que me sai dentre a cortina de contas, ela, a própria, trazendo consigo um perfume doce de rosas. Fazia tempo que não a via assim, tão clara. Estendeu as mãos em minha direção e não pestanejei, agarrei-lhe os dedos mansos e firmes, como no tempo em que dançavam nas teclas do piano. A pele enrugada de viço me jurava colo encostando-se na minha tão leve como brisa. Tocá-la assim me arrancava as palavras da boca. Desviando o olhar ela caminhou comigo até uma poltrona encostada na parede rosada. Sentou-se e sorriu para seu filho que, menino, derramava-se no sofá ao lado. Uma manta o cobria até o pescoço. Passou-lhe a mão pelos cabelos. Ele devolveu o sorriso, os dentinhos separados e miúdos. Ajoelhei-me diante dela e encostei a cabeça no seu peito. Seus batimentos, seu corpo pulsando vida em meus ouvidos... Atormentado de culpa, eu só conseguia dizer: “Sei que não tenho muito tempo...” Repeti seguidas vezes esta mesma frase até me pegar acariciando o encosto da poltrona. Foi tão rápido. Ainda sinto o calor do corpo dela. Foi tão rápido. Esperei tanto por este momento... Quem haveria de me tirar as frases da língua? Onde estariam as conversas que teríamos? Não pude dizer palavra, repeti sem rumo a mesma frase até abrir os olhos e me deparar com a luz branca e intensa que vinha da lâmpada fria do meu quarto. Fitei o teto. Alguém apagou a luz. Quem?

15 de setembro de 2007.