terça-feira, 31 de agosto de 2010

ESPETÁCULO DE SILÊNCIO

Quem será que vai me comprar estas lentes que ousarão afogar as ondas do contemplar, esta aflição, quem vai comprar a borracha que há de apagar as palavras que me enchem as teclas e as folhas dos cadernos? Quem vai comprar as tesouras que vão cortar as carnes que seguram estes ossos graves e pouco ágeis? Quem vai comprar as toalhas, as inúmeras que hão de secar estas lágrimas, estas lancinantes lágrimas, este poetar imundo que não goza de técnica apurada ou sentimento maior, nada tão raro ou único? Quem vai comprar as facas que hão de dilacerar as pérfidas metáforas, comuns mas que se pensam raras e dignas de acordes violinescos, quem vai? Quem se habilita, quem vai comprar os dedos a calar as vozes que ainda me assaltam as cordas roucas e de baixo tom calão ou outras de parca valia? Quem vai comprar os convites para este espetáculo de silêncio e dor? Quem vai comprar as seringas que vão sugar este sangue que escorre lento e lânguido pelas ruínas do penar? QUEM?

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Sem título

Não sai da minha cabeça aquele dia em que eu te dei o meu melhor presente até hoje. Não me lembro que data especial estávamos comemorando, mas as imagens estão todas aqui, na minha cabeça, posso reviver este momento como se hoje fosse. Não foi há tanto tempo assim, alguns anos atrás, mas você tinha um walkman – como soa antigo diante dos MP3, MP4, minúsculos e de inúmeras múltiplas funções! – que funcionava com fita cassete – esta provavelmente extinta!- Seguíamos o mesmo longo trajeto repetidas vezes de ônibus e costumávamos compartilhar o aparelho na viagem. Neste dia, eu trouxe uma fita, mas não fiz questão de um dos fones de ouvido. Contentei-me em assistir à sua reação, tonta imaginando que fragmento você estaria escutando ao esboçar este ou aquele desvio de olhar... As suas lágrimas caíam e eu, ávida de homens sensíveis, achei o máximo a cena. Era um poema que te fiz, lembra? Recitei diante do gravador - jurássico! - sem imaginar que forma que o teu rosto tomaria, de que jeito o teu olho molharia de sal a tua blusa suada, voltando do trabalho... Sorte minha. A melhor coisa do mundo é quando a realidade supera todas as expectativas. Por isso é que guardei este momento – e pretendo continuar guardando – bem no canto do peito. Hoje, quando te perguntei, você não lembrou... Percebi que era o melhor presente que eu te dei, mas na MINHA opinião, não na sua... Tenho este defeito: de prestar atenção naquilo que passa batido pra todo mundo, tipo: tropeçar no meio-fio porque estava olhando um bando de pombos que teimavam em voar juntos, em perfeita formação, numa manhã de junho, sobre os telhados do condomínio.